A mente que sabota as pernas
Por que você erra no treino ou na prova, mesmo quando sabe o que deveria ter feito
O que sabota suas decisões no ciclismo?
Você já se questionou por que, mesmo com planejamento, disciplina e vontade, algumas decisões no ciclismo parecem te empurrar para trás? Não importa se você está começando agora ou se já coleciona anos de estrada — existe algo mais profundo influenciando suas escolhas: os padrões automáticos da mente.
Ciclistas treinam horas para preparar o corpo, mas nem sempre percebem que há outra parte tão decisiva quanto a potência e a cadência: a mente que decide. É ela que escolhe o ritmo, muda o plano, insiste ou desiste. E, muitas vezes, essa mente está longe de ser neutra — ela está carregada de histórias, crenças, inseguranças, memórias de sucesso e medo de falhar de novo.
Nosso cérebro é treinado para economizar energia. Para tomar decisões rápidas. Para buscar coerência emocional, não precisão lógica. E, por isso, ele desenvolveu atalhos mentais — padrões de pensamento que nos ajudam a lidar com o volume de estímulos, mas que muitas vezes distorcem a realidade. Eles são conhecidos como vieses cognitivos. E podem ser os verdadeiros responsáveis por decisões ruins no ciclismo — não o seu FTP, sua bike ou seu planejamento.
Às vezes, você escolhe o treino mais intenso não porque é o mais adequado, mas porque quer sentir que fez algo “de verdade”. O esforço se torna prova de valor. O sofrimento, uma espécie de moral. A sensação de recompensa imediata mascara o que o corpo precisava: um dia leve, um ajuste fino, um pouco mais de recuperação. Mas a mente, viciada em “fazer mais”, ignora o plano e segue o impulso — porque o silêncio de um treino regenerativo é mais difícil de justificar do que o barulho de um treino exaustivo.
Outras vezes, você insiste numa estratégia que já se mostrou falha. A tática que não funcionou na última prova é repetida. O ritmo que te fez quebrar é mantido. Você se apega à consistência não porque ela é eficaz, mas porque mudar exige coragem. Mudar é admitir que algo não estava certo. E isso, para um ego pressionado por performance, pode ser doloroso.
Há dias em que você copia o treino de alguém mais forte, ou força o ritmo no pelotão para não parecer que está sobrando. Mesmo tendo um plano claro, mesmo sabendo que aquele esforço extra vai te custar caro depois. A mente quer pertencimento, quer prova social, quer se proteger do desconforto de parecer “fraco”. E, por isso, toma decisões para agradar o olhar do outro — não o seu processo interno.
O desconforto também aparece quando se depara com a dúvida. Em vez de refletir com calma, você escolhe logo, só para se livrar da ansiedade. Decide no impulso. Ataca na hora errada. Muda o plano no meio do treino. Foge da incerteza como se fosse um erro, e não uma parte natural da construção da performance. Mas toda decisão prematura carrega uma ansiedade mal processada — e ela sempre cobra o preço mais adiante.
Em outros momentos, o julgamento se contamina por afeto ou aversão. Você confia cegamente num conselho só porque veio de alguém querido — ou recusa uma crítica importante apenas porque não gosta de quem a trouxe. Isso acontece mais do que se imagina: o filtro emocional distorce a qualidade da informação, e o que poderia ser um ajuste valioso vira ruído.
A vaidade também entra em cena. Você superestima seu preparo. Sente que está “pronto” antes da hora. Acha que pode fazer mais, mesmo quando os dados e o corpo dizem o contrário. Planeja uma prova como se tudo fosse dar certo. Como se a nutrição, o clima, os adversários e o sono da véspera não tivessem impacto. O otimismo vira cegueira — e o erro, previsível. É a fantasia da onipotência no esporte, onde o controle é sempre parcial.
Tem ainda o medo de perder. De parar por alguns dias e “jogar tudo fora”. Então você treina doente, com dor, cansado demais. Não por inteligência, mas por apego. A mente detesta perdas. E prefere o desgaste à sensação de estar regredindo. Só que, paradoxalmente, esse medo de perder é o que mais faz você se perder do que realmente importa: o processo.
À medida que o tempo passa, o corpo muda. Mas a mente nem sempre acompanha. Você segue esperando que seu rendimento seja igual ao de anos atrás, mesmo em fases de vida, rotina ou idade completamente diferentes. O orgulho de se manter “igual antes” impede ajustes que fariam você evoluir como é possível hoje. O passado se torna uma âncora, e não uma referência.
Sob pressão, tudo isso piora. O julgamento se estreita, a paciência desaparece. Você ataca cedo demais, se rende rápido demais, improvisa o que deveria ser respeitado. O estresse sabota a inteligência, e a mente faz de tudo para aliviar a tensão, mesmo que custe a performance. O problema não é errar sob pressão — é nem perceber que errou.
E quando várias dessas armadilhas agem ao mesmo tempo — quando ego, pressa, comparação, medo de errar, otimismo excessivo e negação se combinam — o resultado é desorganização. A consistência desaparece, o corpo não assimila, o plano perde sentido. E a frustração toma o lugar da motivação.
Mas aqui está o ponto mais importante: isso tudo não é fraqueza. Não é falta de caráter, nem ausência de força de vontade. É funcionamento humano. É o nosso cérebro fazendo o que sempre fez: tentando simplificar um mundo complexo. E o mundo do desempenho é especialmente exigente — porque cobra clareza quando a mente está cheia de ruído.
O que muda o jogo não é evitar completamente esses desvios — é conhecê-los com mais rapidez. É perceber quando o treino forte não é valentia, mas fuga. Quando a comparação não é inspiração, mas distração. Quando o apego ao plano não é disciplina, mas medo de mudar. O segredo está menos em corrigir tudo e mais em construir margem de consciência.
Ciclistas não precisam ser robôs racionais. Mas precisam desenvolver presença. E isso se treina como qualquer outra capacidade: com atenção, com humildade e com vontade de entender mais do que só o que se vê no espelho ou no medidor de potência.
No fim das contas, pedalar bem não é só sobre acertar. É sobre errar melhor a cada vez. É sobre decidir com mais clareza, mesmo em meio ao cansaço. E isso, mais do que watts ou tempo, é o que define quem segue evoluindo — e quem repete sempre o mesmo erro esperando um resultado novo.
Boas pedaladas!